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Velhos, crianças e animais de estimação têm algumas características em comum. A primeira, e mais forte delas, é que as três categorias tornam-se cada vez mais teimosas quando contrariadas. Outra é que tanto uns quantos os outros desenvolvem um sentimento de posse incontrolável, instintivo, pelo lugar que aprenderam a identificar como casa. Clara Bragança, a protagonista de “Aquarius” (2016), pode se considerar no primeiro grupo, e se considera mesmo, sem a pudicícia avassaladora que a idade traz, muito pelo contrário: está plenamente realizada com a mulher em que o tempo a transformou, consciente de seus desejos e senhora de suas inquietações diante da vida.

Esse é o retrato muito particular que o diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho compõe da mulher contemporânea, independente, livre, madura em todas as acepções da palavra, ainda que contraditória, vacilante muitas vezes, mas disposta a pagar o preço por suas escolhas. E é a compreensão que Sônia Braga tem do papel que torna possível vislumbrar-se toda essa potência em cena. Vê-se nitidamente que a Clara de Braga amou, e nem sempre foi feliz; fracassou, mas nunca foi autoindulgente; e acima de tudo, não se cansa de exigir mais da vida. Mendonça Filho escapa com galhardia de um dos tantos clichês acerca da mulher mais velha que se encontra sozinha a certa quadra de sua história. Mãe de Martim, Ana Paula e Rodrigo, todos adultos e cheios de suas próprias questões — malgrados algumas, por óbvio, também lhe digam respeito —, Clara não é a típica dona-de-casa, até porque para isso pode contar com a fiel Ladjane, de Zoraide Coleto (1952-2020), embora seja bicho de seu canto. Equilibrando-se entre o peso dos anos e a vontade de tomar uma tacinha de vinho a mais, a crítica de música aposentada, viúva, se depara com um grande obstáculo, por mais que imagine que para ela esse seja um assunto superado.

O ponto de virada de “Aquarius”, uma referência tanto ao nome do edifício em que Clara mora, Oceania, como ao tempo de mudanças socioculturais segundo os astrólogos, acontece com o filme quase pelo meio, momento em que a personagem central discute com seus três filhos o conflito exposto minutos antes. O Oceania, à beira-mar em Boa Viagem, bairro nobre do Recife, é disputado pela construtora representada por Diego Bonfim, o administrador interpretado por Humberto Carrão. Neto de um figurão do mercado imobiliário, Diego, armado de muito charme e empáfia, tenta persuadir Clara a vender seu apartamento, o único que sobrou no prédio, de maneira amigável num primeiro momento. Diego e o avô, Geraldo, de Fernando Teixeira, não podem perder o negócio: o terreno, muito valorizado, daria um shopping de alto padrão, um patrimônio que lhes garantiria fortuna para além da vida. Isso se Clara concordasse.

Em paralelo à história principal, o diretor maneja muito bem a inserção de flashbacks, em que Clara surge, nos anos 1980, celebrando os 70 anos de Lúcia, de Thaia Perez, uma tia que, como ela, era a força da natureza de liberdade e beleza num mundo — e, em especial, num país — muito mais atrasado. Lúcia rediviva num terceiro milênio em que a intolerância encontra abrigo em corações de pedra, para os quais vivências caras ao espírito devem ser substituídas pelo pragmatismo — e pelo dinheiro —, a personagem de Braga não se interessa em abandonar o lugar em que criou os filhos, teve seus momentos bons e de desarmonia com o homem que amava e conviveu meses a fio com um câncer que acabou por lhe corroer a mama direita. Prefere viver o que ainda lhe resta no seu aconchego, ouvindo suas canções prediletas, admirando a capa de seus inúmeros LPs antigos, atravessar a rua e estar com os pés na areia, onde encontra o grupo com que realiza dinâmicas de relaxamento, envergando um maiô preto meio gasto, caindo na água depois. A amizade com o salva-vidas Roberval, personagem de Irandhir Santos, e as noitadas com Cleide, vivida por Carla Ribas, também sua advogada, quando conhece um ou outro namorado de ocasião, ajudam a explicar a resistência de Clara. Com naturalidade e sem drama.

O desfecho um tanto escatológico, asqueroso mesmo, condensa o que Kleber Mendonça Filho pretendeu dizer com “Aquarius” ao longo das quase duas horas e meia de duração. Escancarando a temática da deturpação de valores, apodrecidos por gente como Diego e Geraldo, Mendonça Filho desenha um cenário acintosamente cruel para uma mulher que só quer viver suas agonias, uma por vez, onde se reconhece. Num mundo mais e mais carente de referências, com pessoas mais e mais faltas de limites, isso parece mesmo uma utopia.


Filme: Aquarius
Diretor: Kleber Mendonça Filho
Ano: 2016
Gênero: Drama
Nota: 8/10

Fonte: Revista Bula